Em meio às comemorações dos 60 anos da TV Globo, com o reaparecimento de tantos programas e quadros esquecidos no tempo, me deparei com um sentimento familiar: onde foi parar nossa ingenuidade?
A palavra 'ingênuo' vem do latim ingenuus, que originalmente significava nascido livre ou natural de. Com o passar dos séculos, seu sentido se deslocou suavemente até chegar ao que conhecemos hoje: a pureza, a sinceridade, a simplicidade de quem vive sem malícia ou artifício.
Pois bem, onde foi parar a ingenuidade para darmos boas risadas? Para falarmos de temas espinhosos sem medo de errar ou discutirmos política sem a ânsia de aniquilar o outro lado? Onde foi parar a leveza de ouvir uma música popular sem julgar a pessoa por trás da canção?
Levamo-nos a sério demais. Tornamo-nos reféns da razão. Não há mais espaço para o erro inocente, para as conversas despretensiosas, para as boas loucuras ou para os temas menores. Da conversa de bar ao jogo de futebol, tudo virou um tribunal.
A ingenuidade com que Ronaldo, Ronaldinho e Romário jogavam simplesmente não existe mais. Hoje, os jovens entram em campo já aprisionados por uma consciência pesada demais, cercados por milhões de analistas prontos para julgá-los com a mesma ferocidade que, outrora, só a televisão exercia.
Empresas, patrocinadores, casas de apostas, empresários, mídias diversas: todos os colocam em campo com uma carga que sufoca o talento. Cada movimento é esquadrinhado: da fala captada por leitura labial à pulseira que usam, ao post que fazem ou deixam de fazer.
Como relatou Estevão, jovem craque palmeirense, em sua carta no The Player's Tribune: mas sabia quanta pressão um garoto de 17 anos pode suportar no Brasil, e como os fãs e a mídia podem te chutar quando você está para baixo.
O que se nota hoje é o peso desproporcional de uma consciência precoce sobre seu papel para além do campo. A leveza natural que deveria acompanhar o talento se perde no caminho. Talvez esteja aí parte do nosso atual insucesso futebolístico.
Somos uma sociedade mais inclusiva, mas ainda pouco nos misturamos. Ideologias políticas, estilos de vida digitais, polarizações sutis e explícitas têm nos afastado da convivência genuína.
A espontaneidade se perdeu na sombra do cancelamento. E, no vácuo das boas vozes que se calaram, surgiram seitas digitais alimentadas pelo culto ao número de seguidores. Falta-nos a boa e velha ingenuidade de simplesmente viver o que a vida oferece de melhor.
Não é saudade de um passado idealizado — longe disso. Mas a ausência da leveza, da permissão para sermos quem somos sem o fardo da racionalidade extenuante, está nos tornando pesados demais.
Deixamos de ver certos filmes porque discordamos do diretor. Abandonamos programas porque sua emissora, supostamente, apoiou um político indesejado. Não lemos certos jornais porque discordamos dos colunistas. Ignoramos a música popular porque não é alta cultura. Deixamos de cumprimentar o vizinho porque ele disse algo em que não acreditamos.
E assim seguimos: cansados, desconfiados, separados.
Não devemos, é claro, passar pano para o que é evidentemente errado, nem sermos levianos diante de atrocidades. Mas também não podemos esquecer da importância de cultivar alguma ingenuidade, alguma leveza necessária para viver.
Como disse Gabriela Prioli, em um episódio recente do podcast Platitudes com Leandro Karnal: algum grau de alienação é imprescindível e inafastável.
Em um mundo tão saturado, onde até a morte do Papa gera disputas políticas, que resgatemos um pouco de sua sabedoria. Afinal, Francisco via no senso de humor um verdadeiro certificado de sanidade. Há mais de quarenta anos, rezava a São Tomás Moré pedindo:
Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir.
Dai-me a saúde do corpo, com o bom humor necessário para a conservar.
Dai-me, Senhor, uma alma santa que saiba aproveitar o que é bom e puro, e não se assuste à vista do pecado, mas encontre a forma de colocar as coisas de novo em ordem.
Dai-me uma alma que não conheça o tédio, as murmurações, os suspiros e os lamentos, e não permitais que sofra excessivamente por essa realidade tão dominadora que se chama 'eu'.
Dai-me, Senhor, o sentido do humor.
Dai-me a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros.
Assim seja.
Talvez, mais do que nunca, precisemos disso: da coragem de sermos, de novo, um pouco mais ingênuos.