Em uma escadaria entre as coleções egípcia e suméria, uma monumental tela captura os olhares dos milhares de visitantes diários do Museu do Louvre. Integrada ao conjunto arquitetônico, a obra dialoga com a imponência do espaço.
Ponto alto da cultura francesa, o Louvre abriga um acervo que atravessa nove mil anos de história. Quando o museu escolhe um artista contemporâneo para entrar definitivamente nessa coleção, o fato é raro o suficiente para ser notado.
É o caso de Anselm Kiefer, primeiro artista vivo a ter uma obra encomendada pelo Louvre em mais de meio século. Sua história e criação é o nosso tema de hoje aqui na PIRA27.
Quebrando o silêncio 🇩🇪
Anselm Kiefer nasceu na Alemanha em março de 1945, e isso o moldou para sempre. Crescido em meio a devastação da Segunda Guerra Mundial, ele teve sua casa bombardeada na noite de seu parto.
Quando criança, brincava entre os escombros e costumava construir pequenas casas com os amontoados de pedras e tijolos. As ruínas são maravilhosas porque são o começo de algo novo, você pode fazer algo com elas, diz ele.
O pequeno construtor amadureceu com inclinação para a criatividade. No entanto, ao ingressar na universidade, optou pelo direito. Mas após três semestres, transferiu-se para a academia de arte.
Seu trabalho artístico partiu de uma questão fundamental: como, depois do Holocausto, ser um artista que se inscreve na tradição alemã?
Como sentenciou Theodor Adorno, escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro. Nesse sentido, Kiefer acompanhou a visão desconcertante de Imre Kertész, que afirmou que toda criação artística era inevitavelmente de Auschwitz.
A Alemanha da qual Kiefer fez parte não muito tempo antes iniciou uma guerra e exterminou seis milhões de judeus. Na escola, seu professor de arte era um ex-membro da SS nazista. Quando ele estudou direito, seus professores eram ex-nazistas.
As atrocidades da qual esta sociedade era responsável eram indescritíveis. Mas quando Kiefer era jovem, ninguém falava sobre isso. Mesmo que uma geração inteira tivesse perpetrado os atos mais atrozes e traumáticos, ninguém tocava nesse assunto.
Por culpa ou vergonha, o passado violento do país era ao mesmo tempo oculto e visível. A verdade estava escondida e Kiefer não podia mais acreditar no superficial.
Seu projeto artístico atravessou o silêncio como uma lâmina afiada.

Estética da ruína 🪨
Da confrontação ao histórico do nazismo e a ilusão de sua superação — destruição e reconstrução —, somada à lembrança visual da infância do artista, surgiu a implementação de uma estética da ruína. Sua obsessão está em transformar o reprimido, o esquecido, o meramente intelectual em forma física.
Toda a obra de Kiefer mergulha na ideia de memória, destruição e violência, combinada em doses inteligentes de literatura que vai de Paul Celan à Cabala. Ele ganhou notoriedade nas décadas de 1970 e 80 ao abordar mitos e questões alemãs contaminados pelo nazismo.
Inspirou-se nas florestas simbólicas, nas paisagens românticas de Caspar David Friedrich e nas referências a Richard Wagner, explorando fotografia, pintura e escultura. Com o tempo, expandiu seu interesse em poesia e mitos de diversas culturas para explorar o esforço humano diante da entropia e decadência.
Quanto à forma, suas telas parecem opacas e cinzas. No entanto, suas cores, sutis e escondidas, emergem lentamente, à medida que a pintura é absorvida pelo olhar.
Além da tinta, Kiefer adiciona materiais como argila, gesso, palha, cinzas e metais. Ele queima, raspa e rabisca palavras buscando extrair o que pensa para cada obra.
Ele derrama chumbo sobre as pinturas, introduzindo um componente de acaso. Nessa luta contra o próprio material, resulta uma impressão selvagem e caótica. Uma violência pertencente à natureza do elemento, que se relaciona com escombros e pilhas de metal.
Se houver muita ordem, a peça está morta; se houver muito caos, ela perde coerência. - Anselm Kiefer
Kiefer vai ao Louvre 🇫🇷
Desde sua criação em 1793, o Museu do Louvre recebeu incorporações de diversos tipos. Monarcas adicionaram novas alas ao edifício, contratando pintores e escultores à vontade.
Porém, com a chegada dos impressionistas na metade final do século XIX, os curadores da França se distanciaram da criação contemporânea. Durante o século seguinte, o museu adotou uma postura restritiva aos artistas vivos.
É certo que houve exceções, como na arquitetura do palácio. Em 1989, a famosa pirâmide de vidro projetada por Ieoh Ming Pei foi instalada na entrada do museu. Contudo, as iniciativas enfrentaram objeções.
Quando o Louvre procurou Kiefer em 2007, havia se passado cinquenta e quatro anos desde que Georges Braque fora convidado para pintar três painéis do teto de uma das salas do edifício, em 1953. Kiefer ficou emocionado quando lhe foi oferecido o espaço entre os egípcios e os sumérios. Toda a arte egípcia fala de renascimento e ressurreição”, explicou.
O artista é bastante preocupado com o lugar em que sua arte é exposta. Segundo ele, suas obras perdem seu poder completamente se colocadas nos espaços errados.
A obra de 10m de altura está situada em um painel arqueado no topo de uma escada napoleônica. Nela, um homem nu repousa de costas no chão. Talvez morto, talvez não.

Acima dele, dominando quase toda a cena, um cosmos turbulento e repleto de estrelas gira em majestosa desordem, ao qual seu corpo se liga por um fio de luz prateada. A paleta é bastante restrita, com toques de azul e marrom no primeiro plano, além de discretas linhas douradas que cortam a composição.
Kiefer trabalha os materiais de sua tela. O chumbo líquido é derramado, nuvens brancas são arrancadas do céu escuro, e texturas se incorporam à obra.

Seu título, Athanor, foi inspirado nos fornos alquímicos usados para transformar chumbo em ouro. O termo também é empregado para descrever a busca de renascimento espiritual.
Para esta obra, Kiefer não se refere à cultura alemã. A pintura provoca reflexões sobre o papel do ser humano no universo, investigando conceitos de espaço, tempo, memória e transcendência da arte.

No Louvre, Athanor é acompanhada por um par de esculturas que ele criou. Elas se relacionam com mitologia e religião.
Em Hortus Conclusus —jardim fechado, em latim —, uma pilha de terra suporta hastes que remetem a caules de folhas moribundas. A imagem remete ao monte em que Jesus foi crucificado.
Já em Danaë, um girassol negro e despetalado surge de livros de chumbo. O título remete à mitologia grega, na qual Zeus, em forma de chuva de ouro, engravidou a princesa Dânae, dando origem a Perseu.
Eu vim para a França pela primeira vez aos 17 anos em um caminhão e fui, por acidente, deixado no Louvre. Eu sempre penso em círculos, então eu gosto de agora ter uma pintura lá. - Anselm Kiefer
O fazer do artista 🏛️
Kiefer caiu bem no gosto dos franceses. Em 2020, foi contratado pelo presidente Emmanuel Macron para uma instalação em homenagem ao escritor e soldado da Primeira Guerra Mundial Maurice Genevoix. Ele se tornou o primeiro artista a realizar um trabalho permanente para o Pantheon, em Paris, em quase um século.
Uma pessoa minimalista cuja expressão artística é maximalista, Kiefer trouxe seu estilo pesado em um momento em que o mínimo estava em voga na arte contemporânea.
A tensão presente controle e desordem em suas pinturas também se encontra na arquitetura de seus estúdios. Em Barjac, no sul da França ele construiu um complexo de 40 hectares que abriga mais de 90 instalações, conectadas por túneis e criptas subterrâneas.
La Ribaute, como é chamada, com o tempo se tornou uma obra de arte em si. Em 2020, o ambiente imersivo se tornou aberto ao público com a mudança do artista para um novo estúdio nos arredores de Paris, um enorme complexo de 36 mil metros. Tão grande que Kiefer utiliza uma bicicleta para se locomover.
Estes espaços e parte de seu processo criativo podem ser vistos no filme Anselm (2023), de Win Wenders. Na película, o diretor de Paris, Texas (1984) e Dias Perfeitos (2023) revisita a carreira do artista e acompanha seu processo para exteriorizar sua arte.