Está na hora de sairmos da caverna 🕯️
Será que estamos na caverna de Platão sem perceber?
O célebre mito, narrado no livro VII da República, descreve prisioneiros acorrentados desde o nascimento, forçados a olhar apenas as sombras projetadas na parede por objetos que passavam diante de uma fogueira. Para eles, aquelas sombras eram a realidade, a única realidade possível. O mito é um convite à reflexão sobre a condição humana: vivemos confortavelmente em percepções limitadas, confundindo reflexos com essência, aparência com verdade.
Pegando emprestada a alegoria de Platão, sinto que estamos presos em uma caverna de redundâncias. A uniformidade das referências é gritante. Todos consumimos os mesmos vídeos, repetimos os mesmos debates, ouvimos as mesmas canções, lemos versões muito semelhantes de livros e acompanhamos os mesmos ídolos. O repertório coletivo, com suas variações superficiais, tornou-se espantosamente homogêneo.
No design, essa uniformidade se acentua. Estúdios e agências recorrem às mesmas influências visuais, e os resultados se repetem em marcas quase idênticas. Narrativas publicitárias seguem o mesmo roteiro: empresas de serviço declaram-se humanas e digitais, empresas de produto aspiram a uma inovação grandiosa e disruptiva. Os textos, inflados por inteligências artificiais, soam cada vez mais padronizados. Os vídeos replicam legendas e efeitos idênticos. A mídia social ecoa, incansável, as mesmas tendências. O entretenimento, seja em streaming ou TV, oferece variações de um mesmo formato.
Quando alguém ousa fazer diferente, como fizeram o Nubank, a Netflix, a Apple, a CazéTV, ou, mais recentemente, Marisa Maiô e a campanha da Tresemmé com Maria Bethânia, o impacto logo se dilui em cópias exaustivas, até que o novo também se torne sombra.
Muitos diriam que se trata de mais um ciclo histórico. A repetição, afinal, é conhecida pela história da arte, da moda e da cultura. Contudo, há uma diferença fundamental. Nunca estivemos tão globalmente conectados. A globalização, embora já seja um termo gasto, atingiu um ponto em que reduziu singularidades. A proximidade transformou-se em pasteurização. Enxergamos todos as mesmas sombras, mesmo em continentes distintos.
O reflexo é nítido. Há campanhas publicitárias brasileiras premiadas no exterior, mas nelas quase não se reconhece o Brasil. Viajar deixou de ser a experiência do inédito. A surpresa está restrita a monumentos e ruínas, porque o contemporâneo já é uniformizado. Arquiteturas que antes distinguiam culturas agora se assemelham, seja em São Paulo, Tóquio ou Nova York. O diferente passou a ser o antigo. O novo é quase indistinguível.
Esse esvaziamento do inesperado se manifesta até nas cenas banais. Conversava com minha mãe e irmã, à mesa de um restaurante, sobre um vídeo de cachorro que tínhamos visto. Minutos depois, a mesa vizinha, sem relação alguma conosco, comentava espontaneamente o mesmo vídeo. O jornal impresso que ainda leio, embora preserve certa pluralidade de vozes, repete as mesmas notícias em diferentes enfoques, como se cada versão fosse apenas mais uma sombra do mesmo fato.
Eis a ironia. Na ânsia de inovação e novidade, tornamo-nos iguais. A autenticidade se converteu em simulacro. Estamos todos na mesma caverna, fitando sombras projetadas por poucos, aqueles com mais alcance, poder e influência.
Platão nos lembrava que a libertação exige coragem para suportar a luz. Talvez valha recuperar uma frase do Fédon: “são muitos os que usam a régua, mas poucos os inspirados.” As ferramentas de nosso tempo, redes, algoritmos e inteligências artificiais, são réguas úteis, mas não bastam. Precisamos da inspiração que nos faz olhar para onde ninguém olha, mesmo correndo o risco de parecer deslocados. Só assim haverá chance de não apenas sair da caverna, mas de aprender a caminhar no mundo aberto, com olhos capazes de suportar o sol e de distinguir, enfim, as formas verdadeiras daquilo que hoje conhecemos apenas como sombra.
Se pudesse fazer um pedido a um gênio da lâmpada solto por aí, pediria para as pessoas, especialmente as que se propõem a criar, que façam algo muito diferente. Que se arrisquem a falar o que ninguém falou, a criar o que ninguém viu, a gritar sem medo aquilo que está no seu íntimo. Que as pessoas parem de seguir perfis que ditam realidades inexistentes e sigam aqueles que tragam verdade. Que as marcas escolham um lado, um público, e não tentem agradar artificialmente a todos. Que deixem de lado ferramentas banais e usem, sempre que puderem, o velho hábito de escrever e observar o mundo apenas com os olhos. Que a tecnologia nos ajude, mas não nos guie. Eu também estou tentando sair da caverna.
Eu fico encucada quando vejo listas de sugestões de livros que se parecem com detetminado livro. Isso indica um público que só quer ler o mesmo livro com personagens levemente diferentes.
Enfim, adorei sua analogia com a caverna de Platão e o texto como um todo, é um lembrete para constantemente ir atrás de algo fora da curva.
Eu fiz um resumo de uma palestra do SXSW desse ano em que se falava de promiscuidade intelectual, sobre saber um pouquinho disso e daquilo, sobre colecionar referências diferentes, vou deixar o link aqui, caso seja do seu interesse!
https://raissalizieri.substack.com/p/promiscuidade-intelectual