Le Bénédicité (1740), de Jean-Siméon Chardin 🍽️
A grandeza das pequenas coisas.
Na história da arte, poucos pintores elevaram o cotidiano à grandeza como ele. Enquanto a pintura grandiosa dominava seu tempo, ele escolheu retratar a vida ordinária, capturando gestos sutis e a beleza dos objetos banais.
Com seu nome quase esquecido após sua morte, sua redescoberta posterior consolidou sua reputação como um dos mais celebrados pintores de natureza-morta. Seus contemporâneos talvez não tenham reconhecido de imediato a força desse olhar, mas sua influência atravessou séculos.
Provocado por um amigo, aventurou-se na pintura de gênero e criou obras como Le Bénédicité, onde a intimidade do lar ganha profundidade quase sagrada. E é com esse olhar que mergulhamos nesta edição.
Background do artista 🎨
Nascido em Paris em 1699, Jean-Baptiste-Siméon Chardin quase nunca deixou sua cidade natal. Filho de um marceneiro, ele iniciou sua formação artística nos estúdios de Pierre-Jacques Cazes e Noël-Nicolas Coypel.
Com o primeiro, aprendeu a arte do desenho e da composição, assim como a cópia. O segundo permitiu-lhe aprimorar suas capacidades de observação natural, compreender a importância do claro-escuro e da evocação poética.
Desse modo, dominou o uso do pastiche de forma estratégica, não como mera cópia, mas como um diálogo sofisticado com tradições artísticas anteriores. Esse jogo de imitação e transformação era uma forma de afirmar sua originalidade em um período que valorizava o virtuosismo técnico.
Não fosse o bastante, Chardin foi acima de tudo um autodidata ambicioso. Com sua habilidade excepcional para representar texturas, ele criou obras com uma sensação tátil que aproxima o espectador, tornando seus quadros quase sensoriais.
Diferente de seus contemporâneos, que seguiam a tradição do rococó francês, suas cenas não buscavam ser dramáticas ou heroicas. Em vez disso, elas capturavam a rotina comum, criando imagens atemporais que não remetem a eventos específicos, mas ecoam a universalidade do cotidiano.
Celebrando o ordinário 🫧
Chardin era conhecido por sua meticulosidade. Ele trabalhava devagar, repetindo composições e fazendo pequenas variações para alcançar o equilíbrio ideal. Essa abordagem refletia sua busca pela perfeição formal, mais do que pela inovação temática.
O início de sua atividade artística foi marcado por naturezas-mortas, como O Buffet (1728) e A Raia (1728). Fase em que ficou conhecido como pintor de frutas e de animais.
A partir de 1733, o artista ampliou seu repertório com figuras humanas. A história conta que Chardin foi provocado a provar seus talentos após repreender um amigo, o retratista Jacques Aved.
Uma senhora ofereceu uma boa quantia para encomendar um retrato de Aved, que recusou a proposta. Chardin criticou o amigo por desperdiçar a oportunidade, ao que Aved respondeu: você parece pensar que um retrato é tão fácil de pintar quanto uma salsicha.
As primeiras pinturas de figuras de Chardin incluíam A Cisterna (1733) e A Lavadeira (1733). O artista exaltava a bondade das pessoas comuns, especialmente mulheres e crianças, retratando-as com uma dignidade silenciosa e distante dos excessos da sociedade aristocrática.
Essa simplicidade, no entanto, não era fruto do acaso. O artista calculou cada elemento para evidenciar relações sociais e morais por meio de pequenos gestos e olhares.
Assim, suas cenas de gênero não apostavam na teatralidade. Ao invés disso, Chardin preferia a discrição, criando personagens em poses naturais, com expressões contidas e gestos sutis que convidavam o espectador à contemplação.
Um instante de delicadeza 🙏
Entre as obras de Chardin, Le Bénédicité exemplifica perfeitamente sua capacidade de transformar o cotidiano banal em sublime. O título, que pode ser traduzido como A Graça, remete ao gesto simples de uma criança fazendo uma oração antes da refeição.
Na pintura, vemos uma cena doméstica modesta: uma mãe observa atentamente enquanto uma de suas filhas, com as mãos juntas, se prepara para agradecer pelo jantar. Ao lado, outra irmã, mais nova, parece distraída, adicionando uma dose de realismo e ternura à cena.
O cômodo modesto possui objetos cuidadosamente dispostos. Cada um deles parece possuir uma história singular.
No chão, uma baqueta repousa, como se a criança tivesse parado de tocar seu tambor para comer a refeição. Na mesa, pratos fundos indicam que a mãe preparou uma sopa quente, liberando uma leve fumaça.

Chardin organiza a composição de forma piramidal, criando uma sensação de calma e estabilidade. A mesa simples, os utensílios domésticos e o ambiente despojado reforçam a ideia de que a beleza está nas coisas comuns.
A paleta de cores é suave, dominada por tons terrosos e neutros. O fundo escuro destaca as três à frente. A luz destaca suavemente os rostos das crianças e o olhar atento da mãe, criando um foco emocional que guia o espectador pela cena.

Embora o tema da oração antes das refeições não fosse original, Chardin trouxe uma abordagem única, destacando a vida cotidiana em vez do aspecto religioso. O gesto da criança não é apenas um ato de fé, mas um reflexo de valores como disciplina e respeito.
Trata-se de um comentário sutil sobre o papel da educação e da moralidade na formação do indivíduo. O quadro não impõe uma lição moral rígida, mas convida o espectador a refletir sobre o equilíbrio entre disciplina e espontaneidade no dia a dia.

Relação com a crítica 💬
Exibida no Salão de Paris de 1740, a pintura foi imediatamente bem recebida, tanto pelo público quanto pela crítica. O sucesso foi tão grande que Chardin presenteou uma versão da obra ao rei Luís XV.
O monarca gostou tanto do artista que lhe concedeu uma pensão real, que foi aumentando ao longo dos anos. Em 1768, ele se mudou para um apartamento no Louvre, onde viveu até sua morte em 1779.
Ao longo de sua carreira, os contemporâneos de Chardin sustentavam que não havia evolução em sua obra, uma crítica ligada à hierarquia acadêmica dos gêneros pictóricos. Segundo essa classificação, os gêneros eram organizados do menos ao mais nobre: natureza-morta, paisagem, cena de gênero, retrato e, no topo, a pintura histórica.
Um comentarista anônimo da época colocou a questão da seguinte forma:
Seu primeiro mestre foi a natureza… Essa precisão (com o claro-escuro e uso das cores) sem dúvida o impediu de se elevar ao gênero da história, que exige mais conhecimento, imaginação, esforço, genialidade e detalhes do que todos os outros gêneros. Ele se limitou a um, preferindo ser o primeiro em um gênero inferior, do que ser confundido na multidão de pintores medíocres em um gênero superior.
Aceitando essa hierarquia, Chardin elevou composições despojadas de objetos cotidianos a um novo patamar, graças à sua refinada técnica pictórica. Apesar das críticas, foi amplamente reconhecido em vida e celebrado por poetas e intelectuais.
Entre seus admiradores estava Denis Diderot, o mais influente crítico de arte da época e editor da Encyclopédie. Enquanto alguns lamentavam sua suposta incapacidade de abordar temas mais nobres, Diderot via sua genialidade na forma como capturava a realidade.
Isso é a própria natureza. Os objetos se destacam da tela e são tão reais que meus olhos são enganados por eles. Para olhar as pinturas de outros artistas, sinto que preciso de olhos diferentes; mas para olhar as de Chardin, basta que eu use os que a natureza me deu e os utilize corretamente. - Denis Diderot, em 1765.
Legado moderno 🌟
Em seus últimos anos, Chardin enfrentou desafios com as mudanças no gosto artístico. O neoclassicismo emergente, com sua grandiosidade e idealismo, reduziu o prestígio da estética doméstica e introspectiva que marcava sua obra.
Após sua morte, seu nome caiu em relativa obscuridade, mas foi resgatado por artistas, críticos e historiadores que reconheceram seu papel na evolução da pintura moderna. Sua abordagem à luz, cor e composição inspirou artistas do século XIX, como os impressionistas, que admiravam sua sutileza na captura da atmosfera.
Posteriormente, Paul Cézanne viu em Chardin um precursor da modernidade. Enquanto Matisse, Braque e Morandi reconheceram sua influência na transformação de cenas triviais em obras-primas atemporais.
Seu sentimento não era forçado, mas nascia da honestidade e da empatia, tornando-o um dos mais adoráveis pintores do século XVIII. Em um mundo acelerado, sua obra nos convida a pausar e contemplar, lembrando que há beleza nas pequenas coisas, na repetição do cotidiano e na serenidade do momento presente.