O Menino Pintor (1952), de Arcangelo Ianelli 👦🏻
Os primeiros passos de um pintor abstrato.
Ele defendia uma arte pura. Isto é, uma obra deve falar apenas por si, sem necessidade de dissertações. Deve transmitir algo às pessoas somente pelo conteúdo formal.
Sua busca era por essa essência. Uma arte que tocasse o sensível, sem recorrer à narrativa. Um compromisso radical com a linguagem pictórica.
Estamos falando do brasileiro Arcangelo Ianelli. Dedicado ao trabalho, estudou a arte acadêmica e explorou novos caminhos ao se desprender dela.
Mas para alcançar seu projeto artístico, ele iniciou pela observação do espaço físico e familiar. Hoje, visitamos uma dessas obras iniciais e a trajetória de um artista que deixou sua marca na arte brasileira do século XX.
Em boa companhia 🤝
Filho de imigrantes italianos, Arcangelo Ianelli nasceu em São Paulo poucos meses após a realização da Semana de Arte Moderna de 1922. Iniciou seus estudos na Associação Paulista de Belas Artes e logo buscou caminhos mais livres, transitando entre o ateliê de colegas e o aprendizado autodidata.
Participou da fundação do Grupo Guanabara, convivendo com nomes como Tikashi Fukushima, Massao Okinaka, Yoshiya Takaoka e Manabu Mabe. Ao longo de uma década, o grupo pintou junto, circulou entre universo artístico, participou de conferências e promoveu exposições.

Apesar dos laços com diversos artistas, Ianelli manteve sua independência estilística. Também não acreditava na inspiração romântica — para ele, arte era trabalho. E foi assim, no esforço cotidiano, que construiu seu universo visual.
Sua primeira exposição aconteceu em 1950, marcando a decisão de viver da pintura. Nesse período, sua trajetória também foi entrelaçada à vida familiar, com o nascimento de seus filhos Katia e Rubens.

Pai e filhos 🎨
Uma das obras inaugurais da modernidade de lanelli é O Menino Pintor, de 1952. A cena revela um ateliê amplo, banhado de luz natural que entra por janelas de vidro e se espalha pelo espaço.
Grandes pinturas pendem das paredes, enquanto esculturas repousam discretamente sobre móveis. No centro, um cavalete impõe sua presença. No chão, dois brinquedos — um pato com rodinhas e uma bola laranja — introduzem o universo infantil.
O pequeno pintor é Rubens, futuro artista. A menina que o observa é sua irmã Katia, espectadora atenta e silenciosa do gesto criativo.

O reflexo dos elementos se projeta no piso. Mas nada ali é exato: os contornos são difusos, como se vistos através de uma memória ou sonho.
A cena ganha esse aspecto enevoado, turvo, em que as fronteiras entre arte, infância e cotidiano se dissolvem. É pintura sobre o que escapa.
Rubens pinta a favor da luz e remete à presença de Ianelli fora de campo. E Katia, entre pai e filho, forma uma triangulação que projeta em nosso imaginário a cena para além dos limites do quadro.

Os únicos elementos coloridos são os brinquedos e o laço do vestido da menina. O branco, o amarelo e o laranja contrastam com os tons ocre e marrons.
O espaço da casa se organiza como um prelúdio de sua linguagem futura: paredes, móveis e quadros pendurados formam retângulos e quadrados, linhas verticais e horizontais, que antecipam o rigor geométrico de sua obra posterior.

Rumo à abstração geométrica 📐
Os anos 1950 foram decisivos para a arte de Ianelli. Obras como O Menino Pintor já evidenciam sua habilidade para a simplificação e no jogo entre as coisas e o espaço que elas ocupam.
Aos poucos, suas pinturas figurativas receberam reduções formais e a intenção abstrata foi se tornando cada vez mais nítida. Formas, linhas retas e diagonais passaram a ocupar com mais frequência o espaço da composição.

No início dos anos 1960, Ianelli entra em uma fase de transição que o revela como um experimentador radical. As telas crescem, o preto predomina e as formas perdem o rigor, ganhando textura e expressividade.
Ainda na mesma década, o artista passa dois anos na Europa, vivendo em Roma e depois em Paris. A viagem marca uma inflexão em sua trajetória. A abstração densa dá lugar a grafismos que evocam entalhes em pedra, em tons terrosos.
Nos anos 1970, sua linguagem atinge a maturidade. Losangos giram em torno de seu próprio eixo, as cores se tornam mais vivas e diagonais voltam a cortar os espaços. Logo surgem quadrados e retângulos sobrepostos.
A abstração geométrica de Ianelli não é dura, nem busca o rigor matemático típico do concretismo europeu. Suas formas são feitas à mão, com pequenas imperfeições deliberadas que humanizam a composição.
Em 1974, Ianelli foi convidado para criar um mural na fachada do Edifício Diâmetro, na Faria Lima. Em vez de optar pela pintura, buscou uma solução que dialogasse com o espaço e resistisse ao tempo: um conjunto de três obras em cimento, com 20 metros de largura por 3 de altura.
A experiência marcou sua aproximação com a tridimensionalidade e deu início à produção de esculturas. Nas décadas de 1980 e 1990, Ianelli intensificou a produção escultórica, sobretudo em mármore e madeira.
O novo caminho, porém, não excluiu a pintura. Ao contrário: escultura e tela dialogavam em uma pesquisa constante sobre a cor, o espaço e a forma.
A passagem para uma abstração pura, uma pura geometria, era o corolário inevitável. E assim sucedeu. — Paulo Mendes de Almeida, crítico brasileiro, sobre a arte de Ianelli.
Reconhecimentos ✈️
Ao longo de sua trajetória, Arcangelo Ianelli consolidou sua presença no circuito artístico internacional. No tempo em que passou na Europa, expôs em países como Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, Áustria, Suíça e França.
Nas décadas de 1960 e 70, participou de 11 Bienais em cidades como São Paulo, Salvador, Medellín, Caracas e Cidade do México. Também esteve em mostras nos Estados Unidos e Canadá.
Seu trabalho, ancorado na busca por uma linguagem universal — feita de cor, forma e volume —, ultrapassou fronteiras sem se perder em regionalismos. Sua arte se comunicava por meio de elementos essenciais e atemporais.
A década de 1980 foi marcada por mostras no exterior, incluindo uma grande retrospectiva na Staatliche Kunsthalle de Berlim. Em 1990, foi ao Japão como curador e expositor da IX Exposição Brasil-Japão de Arte Contemporânea, levando sua obra a dialogar com a sensibilidade oriental.

Em 2002, realizou uma grande retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A exposição reuniu pinturas e esculturas, reafirmando o caráter multifacetado de sua produção.
Faleceu em 2009, aos 86 anos, em São Paulo. Até seus últimos dias, manteve uma rotina disciplinada de trabalho em seu ateliê, cercado pela família, por árvores e pelo silêncio que tanto valorizava.
Em 2023, ano de seu centenário, foi homenageado em uma grande retrospectiva do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). A exposição destacou a coerência e a evolução de sua obra, desde os trabalhos figurativos dos anos 1950 até as grandes telas abstratas produzidas entre 1960 e 2000.
Foram recriados aspectos do ateliê de Ianelli, proporcionando aos visitantes uma imersão no processo criativo do artista. A mostra reafirmou a importância de Ianelli na arte brasileira e sua relação histórica com o MAM-SP, onde realizou sua primeira mostra individual e participou de seis edições do Panorama de Arte Brasileira.
Fala-se muito em raízes, arte de cunho nacionalista, procura de identidade nacional etc. Sempre achei que a arte não deve depender de fronteiras ou regiões. A arte é uma, e quanto mais alto o seu nível, mais universal ela se torna. — Arcangelo Ianelli.
como é importante ver a trajetória toda pra apreciar o resultado “final”! achei o texto legal demais!