Por trás das cortinas com Gabriela Munhoz 💬
Uma atriz-gestora na direção artística do Theatro São Pedro e do Multipalco.
Por trás das cortinas de um teatro, há uma engrenagem complexa que une planejamento, sensibilidade e gestão. A direção artística é uma das partes centrais dessa estrutura: é quem define as linhas curatoriais, organiza a programação e assegura que cada espetáculo dialogue com o público e com o tempo em que vivemos.
Desde 2023, essa função no Theatro São Pedro e no complexo do Multipalco Eva Sopher está sob a responsabilidade de Gabriela Munhoz, atriz e gestora cultural que hoje ocupa a direção artística da Fundação Teatro São Pedro.
Com formação em Artes Dramáticas, pós-graduação em Filosofia e atualmente mestranda em Artes Cênicas na UFRGS, Gabriela construiu uma trajetória que transita entre o palco e a administração pública. Está na Secretaria Estadual da Cultura há cinco anos, na qual passou pelo Instituto Estadual das Artes Cênicas (IEACEN) e pela direção do Teatro de Arena. Locais onde se aprofundou em políticas culturais, curadoria e produção.
À frente de um dos teatros mais simbólicos do Rio Grande do Sul e do Brasil, ela enfrenta o desafio de preservar uma casa com 167 anos de história enquanto impulsiona novas linguagens e públicos por meio do Multipalco Eva Sopher.
Nesta entrevista à PIRA27, Gabriela fala sobre sua trajetória, o equilíbrio entre arte e gestão e os bastidores de uma das instituições culturais mais importantes do país.
Você possui formação em Artes Dramáticas e mais de 20 anos de atuação no cenário cultural. Como essa experiência como atriz influencia sua forma de gerir e de fazer a curadoria?
💬 Cada vez mais eu acho que a minha carreira, que os meus modos de atuação estão muito interligados e conectados. E, mais do que isso, eles são complementares.
Quando eu era mais jovem, durante um tempo, eu achava que eu tinha que fazer escolhas, que esses modos de trabalhar eram incompatíveis. Ou eu era produtora, ou eu era gestora, ou eu era atriz, ou eu era curadora.
Hoje eu percebo diferente. Eu acredito, especialmente trabalhando com gestão de cultura pública, que os escopos se complementam, e que trabalhar com política pública, sendo atriz, tendo um corpo de artista, me auxilia a entender as demandas, as necessidades, as vivências mesmo, que são necessárias para o setor. Eu tenho lugar de fala, entendo que é diferente do que ter um burocrata na função, por exemplo.
Do mesmo modo a gestão me auxilia enquanto atriz, pois eu trabalho muito com observação. Então, viver tudo que eu vivo dentro da prática da gestão me acumula, me dá repertório para o meu trabalho artístico.
Você vem trabalhando há 15 anos na relação entre arte e cuidado de si. Como essa pesquisa dialoga com sua atuação na Fundação?
💬 A questão do cuidado de si, que é um conceito um tanto complexo de um filósofo chamado Foucault, é uma prática de vida, um olhar e um modo de pensar a vida, que eu investiguei e trabalhei em oficinas que eu dei durante alguns anos com profissionais de áreas diversas, que eu aproximava da arte. Eu gosto muito da filosofia, especialmente da área da filosofia da diferença, que é o segmento de estudos da minha mãe, pesquisadora, e essas leituras e estudos sempre me foram importantes para compreender e ou questionar o meu lugar, espaço, tempo no mundo, seja como artista, gestora, mulher.
Eu não acho que as coisas são dicotômicas: arte e vida, corpo e mente. Eu gosto de pensar nessa fusão, nessa simbiose entre o que a gente é e está, o nosso comportamento e o modo como nos relacionamos e vivemos, e a nossa prática profissional. Tudo nos constitui. Tudo é efêmero e misturado.
Quais são seus projetos atuais como atriz e como conciliar a paixão pela atuação como trabalho de gestora?
💬 Como atriz, hoje, eu tenho um espetáculo chamado Idade é um Sentimento, um texto inédito no Brasil que eu comprei de uma autora canadense, Haley McGee, com tradução de Diego Teza. É uma direção e encenação de Camila Bauer, direção de movimento de Carlota Albuquerque, com a multiartista Paola Kirst e eu em cena. É um espetáculo que a gente estreou tem um ano, e fizemos os principais festivais aqui do Rio Grande do Sul, fomos para o Rio de Janeiro, para São Paulo, fizemos uma turnê do Sesc no RS. Rolou muito bonito neste um ano.
Meu trabalho hoje como atriz está muito conectado a esse espetáculo, que é uma obra que é idealização e produção minha, junto de grandes parceiras, além de eu estar em cena como atriz. E o discurso do espetáculo está muito conectado ao meu discurso pessoal sobre questões que me importam muito neste tempo: pensar a passagem de tempo, os atravessamentos da condição de ser uma mulher no Brasil, relações que atravessam o trabalho, a maternidade, a maturidade, a finitude da vida.
E sim, existem muitas dificuldades. Dificuldades primeiro como atriz, que todas temos. Porque sim, fazer arte no Brasil é complexo, é trabalhoso, a gente não tem patrocínio nesse espetáculo.
Enquanto gestora eu tenho uma rotina intensa de trabalho diário e também tenho restrições na minha atuação como artista, que são restrições óbvias. Enquanto curadora é óbvio que eu não vou me pautar ou estar em instituições públicas do governo parceiras. Então, o meu campo de atuação fica mais reduzido do que qualquer artista que não está ocupando algum cargo desta natureza. E isso é natural que aconteça.
Eu acho que é um ato de resistência no Brasil a gente encarar ser artista e gestora simultaneamente. Mas temos que ocupar o sistema público, lutar pelo que acreditamos enquanto política para as artes, rasgar espaços e novos diálogos. Não é simples e fácil, mas eu acredito e essa é a minha causa.
Inclusive, algo bem atual na minha vida é que eu entrei no mestrado da UFRGS para investigar isso. O meu objeto, que eu começo a pesquisar agora, é justamente pensar sobre esse trânsito entre uma mulher artista e gestora pública. Todas as implicações e trânsitos disso. Aliás, porque há tão poucas mulheres-artistas-gestoras à frente desenvolvendo essa função de liderança no Brasil?
Desde que assumiu a direção artística em 2023, qual balanço você faz das conquistas e desafios enfrentados até aqui? Como é assumir a direção artística de uma instituição com um legado tão forte e presente na nossa cultura?
💬 Eu entrei na Secretaria de Estado da Cultura tem quase cinco anos. Eu fui diretora do Instituto Estadual das Artes Cênicas, do Teatro de Arena, e agora eu estou completando, exatamente agora, estou completando dois anos de Fundação Teatro São Pedro, como diretora artística aqui.
Eu tenho bastante orgulho da trajetória que eu venho construindo junto aos meus pares. Eu tive muita confiança da secretária Beatriz Araújo, ex-secretária atualmente, por quem eu tenho imensa admiração e respeito e foi quem confiou muito a mim essas responsabilidades. Junto do Antonio, presidente da Fundação, com quem trabalho diretamente. A possibilidade de desenvolver um pensamento curatorial que acredito, além de pensar formação, ocupação, desenvolver projetos e editais públicos, que é uma ferramenta que eu acredito muito, tanto no IEACEN (Instituto Estadual de Artes Cênicas), quanto no Teatro de Arena, e agora no Theatro São Pedro nesses dois anos, me é muito cara.
Tenho desenvolvido uma curadoria que busca a diversidade, a pluralidade, tanto de linguagens quanto de públicos, sempre atenta a questões importantes desse tempo, pautas que são necessárias da gente olhar. Questões de gênero, raça, preconceitos diversos, patriarcado. Trazendo memória, brasilidade. Dando oportunidade para grupos locais. Provocando e trazendo grupos de fora também.
Uma fundação, um complexo como esse que a gente tem hoje, o Multipalco Eva Sopher, não pode ser composto só de programação artística. Programação artística é um braço muito importante, mas a gente precisa de política pública, a gente precisa de formação, reflexão, ocupação efervescente, democrática e descentralizada. É um desafio grande, mas eu tenho bastante orgulho do que a gente tem conseguido entregar nesses anos de trabalho coletivo e aguerrido.
Como você vê a relação e a complementaridade entre o Theatro São Pedro histórico e o moderno complexo do Multipalco na oferta cultural para Porto Alegre e para o estado?
💬 O Theatro São Pedro é um espaço único, e isso é em relação a várias coisas. O Theatro São Pedro tem especificidades dele e uma trajetória de 167 anos que diz muito sobre a cultura do nosso estado. É impossível falar em arte e cultura no nosso estado sem referenciar o Theatro São Pedro.
O Complexo Multipalco, importante dizer que o Multipalco chama Eva Sopher, é um complexo muito atualizado a esse tempo. E nesse sentido, têm a multiplicidade de linguagens, o nosso interesse em trazer as coisas mais híbridas, menos dentro das caixinhas, ocupando espaços de modo diverso, plural, gerando oportunidades.
Acho que o Theatro São Pedro é um teatro, com tudo que isso implica, com todas as belezas que ele tem. E o Multipalco Eva Sopher vem num discurso mais amplo, mais múltiplo. Acho que o Multipalco vem num lugar de multiplicidade. E é assim que a gente tem trabalhado nos últimos tempos.
Para o público que talvez não entenda a fundo o processo, como funciona a curadoria? Quais são os primeiros passos quando se pensa em trazer um espetáculo ou evento para cá ou quando eles procuram o Multipalco?
💬 A primeira ação é entrar no site do Theatro São Pedro, têm os pedidos de pauta ali, e enviar qual é a produção, apresentar o projeto. O departamento da programação faz reuniões periódicas curatoriais, nas quais a gente analisa, olha para os projetos com todo cuidado e atenção.
Por isso é importante enviar o máximo de informações: trajetória, imagens, links de vídeo.
Hoje nós temos operado com alguns critérios, alguns parâmetros curatoriais, que, como eu havia dito, neste momento, estão bastante conectados a um discurso diverso, plural, conectado ao mundo de hoje.
Temos, também, operado com editais que olham para a singularidade da cena gaúcha. Para grupos com trajetória. Outros que estimulam mais a criação, artistas novos. Outro que fomenta grupos do interior do estado. Há uma preocupação em olhar para a cena como um todo, mas existe um pensamento curatorial que não é por ordem de chegada.
Ainda para o público leigo, quais são os detalhes ou curiosidades que eles talvez não percebam, mas que fazem toda a diferença na experiência de um espetáculo?
💬 A gente acredita que o teatro é uma ferramenta de transformação social. Então, quando a gente vai ao teatro, nós somos afetados pela obra e isso repercute na vida.
E isso não é sobre gostar ou não gostar de uma apresentação. O incômodo, a inquietação, e inclusive desgostar de uma obra, faz parte deste processo de afetação que a arte tem. Chamo atenção para isso: o público, de modo geral, vai ao teatro para se entreter, porém a potência da repercussão da arte em nós é muito maior que isso.
O Teatro Oficina Olga Reverbel, inaugurado em 2023, apresenta uma linguagem diferente do Teatro Simões Lopes Neto. Quais são as diferenças que você destacaria, até mesmo para a curadoria das peças destes diferentes espaços?
💬 O Teatro Oficina Olga Reverbel é um teatro com uma configuração diferente estruturalmente. É um espaço modulável, que tem possibilidades e alternativas em sua configuração. É um teatro menor do que o Simões, com uma capacidade de 130 pessoas e se caracteriza como uma caixa bastante intimista.
Temos operado sem taxa mínima fixa, isso faz com que os grupos que se apresentam ali, tenham menos riscos financeiros e mais possibilidade de viabilizar suas apresentações, especialmente para as produções que não têm patrocínio.
O Olga tem sido muito ocupado por grupos gaúchos. Há uma característica de descentralização de grupos e de públicos. Nós temos um edital que traz grupos de diversos municípios do RS, e a gente tem conseguido receber artistas mais iniciantes também, com projetos mais experimentais. Ou seja, há uma ocupação diferente entre os teatros, o que abrange mais artistas e maior pluralidade de públicos.
Quais são os espetáculos ou iniciativas que você mais destacaria na sua gestão até agora?
💬 A programação está bastante diversa. Há muito espaço para a cena local, com festivais e demais políticas de fomento para estimular a estada de grupos gaúchos nos teatros. Há, também, uma curadoria ativa nacional, que busca espetáculos da cena nacional e internacional que estão efervescentes, e que tenham discursos importantes para este tempo. Entendo que temos programação hoje para todas as idades, gostos, linguagens, dentro dos segmentos de teatro, dança, circo, música, ópera, literatura.
Na sua visão, o que precisamos para ampliar o acesso à cultura, buscando atrair novos públicos, como os jovens, ao teatro?
💬 Trabalhar a formação de plateia é algo complexo. Eu acho que a política, a gestão de cultura, ela é um organismo muito vivo. A gente não tem respostas prontas, trabalhar com política cultural é um jogo de erros e acertos. A criação e desenvolvimento de ações é um grande jogo de erros e acertos. A gente vai testando, vai tateando e vai se adaptando, com a escuta aberta e atenta ao setor e ao mundo, de modo geral.





