Como se constrói um teatro? Não se trata apenas de paredes, palco, camarins e poltronas. Há também sonhos, desafios arquitetônicos, entraves burocráticos e uma incansável busca por recursos. Assim surgiu o Multipalco, um complexo cultural no coração de Porto Alegre. No centro dessa história, uma mulher visionária, determinada e teimosa como uma rocha: Eva Sopher.
A utopia de Dona Eva 🌟
O sonho do Multipalco começou a tomar forma após a bem-sucedida reconstrução do Theatro São Pedro, entre 1975 e 1984, sob a liderança incansável de Eva Sopher. Nos anos seguintes à obra, ela vislumbrou a possibilidade de anexar ao teatro um espaço técnico e administrativo.
Era um desejo prático: guardar cenários, figurinos e equipamentos. Mas como todo bom desejo, cresceu.
Em um terreno com pequenos lotes abandonados e alguns casebres, Dona Eva viu um complexo cultural. O caminho para sua construção, porém, não seria linear.
Em 1996, o governo do Estado do Rio Grande do Sul, lançou um concurso público de arquitetura. A proposta vencedora foi a dos arquitetos Julio Ramos Collares, Dalton Bernardes e Marco Peres. Em 1999, o projeto recebeu a Medalha de Ouro na 9ª Quadrienal de Arquitetura para Teatros do Terceiro Milênio, em Praga, na República Tcheca.
Um dos desafios mais significativos surgiu da exigência de preservar a paisagem ao redor do Theatro São Pedro e da Praça da Matriz. O tombamento histórico dos prédios no entorno levou à determinação de que nenhuma construção nova poderia ultrapassar o nível da soleira da entrada principal do São Pedro.
A solução? Um edifício que submergisse no terreno, tornando-se quase inteiramente subterrâneo.
O início das obras se deu em 2003. Dona Eva reuniu um punhado de autoridades, artistas e uma plateia de cadeiras de plástico para lançar a pedra fundamental. O público assistiu a uma versão multimídia de Romeu e Julieta, enquanto, por R$ 10, podia adquirir sua própria pazinha e colaborar simbolicamente com as escavações.
Mas o sonho logo se deparou com a realidade. A área escolhida era composta por rocha maciça, exigindo dinamitação controlada.
Para isso, a Escola de Engenharia da UFRGS foi acionada, utilizando sismógrafos para garantir que as detonações não afetassem os edifícios vizinhos. Uma etapa que já demonstrava a magnitude da empreitada.
Além do obstáculo rochoso, a construção enfrentou dificuldades financeiras e entraves burocráticos. Para viabilizar o projeto, Eva Sopher e sua equipe lançaram mão de diversas estratégias para mobilizar autoridades e a comunidade.

Campanhas de arrecadação de fundos, que permitiam a destinação de valores do Imposto de Renda, foram constantes. Além do Estado, o projeto contou com o apoio de empresas privadas.
Artistas também ajudaram. Ainda em 2003, Beatriz Segall, Ney Latorraca e José Wilker emprestaram suas imagens para uma campanha.
Em seguida, somaram-se nomes como Thedy Corrêa, Luiz Paulo Vasconcellos, Belchior, Suzana Vieira, Edson Celulari, Paulo Autran e Carmen Silva. Em 2004, foi a vez de Fernanda Montenegro.
Apesar de tudo, prevista para 2006, a inauguração foi adiada diversas vezes. O tempo, que não costuma ter paciência com utopias, agiu como sempre.
Uma vitória da persistência ⏳
Os anos que se sucederam foram de novos desafios na captação de recursos. Eva Sopher sentou-se com governadores, ministros, secretários e empresários em busca de solução.
Apesar dos percalços, a obstinação de Dona Eva e o reconhecimento público da importância do Multipalco mantiveram o sonho vivo. Em 2009, a parte externa do complexo foi inaugurada, incluindo a Concha Acústica. No ano seguinte três andares de estacionamento foram abertos. Já em 2014, foi entregue a Sala da Música.
As obras avançavam lentamente, sem previsão de conclusão. Ainda assim, algumas salas eram inauguradas. Parte das fundações e do subsolo também foi concluída, mas sem condições de uso pleno.
Àquela altura, a nonagenária Eva Sopher começara a enfrentar problemas de saúde, mas mantinha-se à frente do projeto. Viveu a tempo de ter seu reconhecimento em vida.
Recebeu as mais altas honrarias do Estado e da Cidade que adotou como lar. Foi homenageada pelo Senado Federal com o Diploma Bertha Lutz. Condecorada com a Ordem das Artes e das Letras da França e a Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha.
E principalmente, consagrada por artistas e espectadores como sinônimo de luta pela cultura. Graças a ela, as obras nunca foram interrompidas.
De origem judaica, Eva nasceu em Frankfurt em 1923. Ainda jovem veio ao país fugindo da perseguição nazista. Aqui encontrou seu lar e se tornou brasileira. Após décadas liderando o Theatro São Pedro e seu complexo cultural, em 7 de fevereiro de 2018, descansou.
Em sua memória, o projeto foi renomeado como Multipalco Eva Sopher. Coube à Fundação Theatro São Pedro, que passara a ser presidida por Antônio Hohlfeldt, dar continuidade ao empreendimento.
Novos aportes permitiram o retorno das obras em 2019. Em março de 2023, um marco importante foi alcançado com a inauguração do Teatro Oficina Olga Reverbel.
Foram também entregues salas de dança, de circo, camarins e salas de estudo. As obras do tão aguardado teatro italiano do Multipalco, agora denominado Teatro Simões Lopes Neto, foram retomadas em abril 2023 e concluídas em março de 2025.
A utopia de Dona Eva estava realizada em sua integralidade.
O mais importante é a obra, e não a gente. — Eva Sopher
O projeto arquitetônico 📐
O Multipalco se destaca por sua arquitetura silenciosa1, que se integra harmoniosamente ao entorno histórico sem competir com a fachada do Theatro São Pedro. A proposta criou um amplo foyer com pé-direito triplo, que funciona como um espaço de conexão entre os diferentes níveis e atividades do complexo.
A edificação possui cinco pavimentos de área construída e oferece toda a infraestrutura para diversas artes de palco. Além disso, conta com mais três andares de estacionamento.
Ao longo dos anos, o empreendimento recebeu importantes modificações. Em todas as revisões, Julio Ramos Collares e Dalton Bernardes, arquitetos originais do projeto, foram convocados.
Um exemplo é o Teatro Simões Lopes Neto, inicialmente projetado para 420 lugares. Após uma visita às obras por Eva Sopher e suas conselheiras e amigas, as atrizes Eva Wilma, Nathália Timberg e Tônia Carrero, elas concluíram que o número de acentos previstos seriam insuficientes para atrair grandes companhias de outras cidades.
Essa demanda resultou em modificações estruturais que permitiram à sala comportar 140 lugares a mais, chegando a uma capacidade final de 560 lugares. Mais tarde, seguindo um conselho do maestro Evandro Matté, o fosso da orquestra também foi ampliado para abrigar espetáculos com orquestra sinfônica.
Outro palco do complexo, o Teatro Oficina Olga Reverbel foi pensado para criações expressivas alternativas e experimentais. Com capacidade para aproximadamente 120 espectadores, sua concepção permite a diluição do limite entre palco e plateia.
O espaço não possui cadeiras fixas. Isso permite que cada apresentação se organize de forma diferenciada no ambiente. Além disso, a sala possui um piso de madeira de araucária com pequenas placas de borracha em toda a sua área para garantir o amortecimento de queda de atores e bailarinos.
Ainda no interior do Multipalco, há toda a sede administrativa da Fundação Teatro São Pedro, distintas salas de atividades artísticas e o Centro de Formação Cultural. O local atende crianças e jovens de escolas públicas da periferia urbana de Porto Alegre.
Na parte externa, a Praça do Multipalco proporciona eventos ao ar livre. O espaço conta ainda com restaurante e galpão cobertos por um Eco Telhado. A solução sustentável reduz o impacto visual do concreto, melhora o conforto térmico e acústico e economiza energia.
O complexo também buscou resgatar elementos do passado, como a Concha Acústica, que evoca o antigo Auditório Araújo Vianna, que existiu na Praça Marechal Deodoro. O espaço tornou-se um palco para shows e apresentações.
Todo o empreendimento agora faz companhia ao histórico Theatro São Pedro. Um lugar que continua ecoando o sonho de quem fez do teatro a própria vida: Eva Sopher.
Confira também: recados para Dona Eva 💌
Ao longo dos anos, diversos artistas e amigos que se apresentaram no Theatro São Pedro deixaram mensagens carinhosas para Eva Sopher. Confira alguns:
Eva, linda amiga. Mais uma vez: encantado! Obrigado Até a próxima. "Vermelho"! — Antônio Fagundes, novembro de 2012.
Pelas viagens da vida quis descer aqui para encontrar um sonho com a certeza de que nunca o perdi. Obrigada pela realização do grande show Elza canta e Chora Lupicínio no encontro das rosas estão justamente aqui. My name is now. — Elza Soares, 17 de dezembro de 2014.
Para D. Eva — e para o pessoal do Theatro São Pedro meu abraço embasbacado. — Chico Buarque, 31 de março de 2007.
À querida D. Eva e à toda equipe do Teatro São Pedro, meus melhores sentimentos, minhas mais efusivas homenagens a este teatro mantido, dirigido e conservado com o talento e o esforço daqueles que amam o palco e vivem para ele. Muito obrigado e até à volta. “Louro, alto, solteiro, procura…”. — Miguel Falabella, 17 de outubro de 1999.
Dona Eva, mais uma vez, com enorme gosto. Beijos. Adoro este teatro. — Ney Matogrosso, 13 de novembro de 2007.
Eva querida. Lá em Botafogo, no Rio, no nosso teatrinho Poeira, sempre que me sinto fraca penso em você Eva e na grandiosa e bela e útil construção teatral que é a sua vida! Obrigada! Beijos da tua fã e amiga. — Marieta Severo, 22 de março de 2014.
Este teatro é dos lugares que mais amo, minhas recordações daqui são as melhores, os encontros, os espetáculos, tudo. Espero estar neste palco muitas vezes ainda. Obrigada Dona Eva e toda(s) a(s) equipe(s) da casa. — Adriana Calcanhotto, 16 de setembro de 2009.
To be or not to be. Eu* me orgulho do Theatro São Pedro! *como brasileiro. — Ziraldo, 10 novembro de 2006.
D. Eva queridíssima. Agora, depois de tantas temporadas, quero apenas registrar minha amizade eterna e a enorme gratidão por este pouso tão acolhedor. Até a próxima! Abraços. — Juca de Oliveira, 1º de Abril de 2000.
Termo empregado pelos arquitetos Julio Ramos Collares e Dalton Bernardes, autores do projeto.
Muito bom, história inspiradora e um espaço encantador!