Na tarde de 26 de abril de 1937, o céu de Guernica escureceu. Bombardeiros nazistas abriram fogo contra a pequena cidade espanhola.
A notícia do ataque chocou o mundo, mas foi por meio da arte que o acontecimento ficou para a história. Abalado com os acontecimentos em seu país natal, Pablo Picasso criou uma obra que permaneceu na consciência coletiva como uma profunda condenação ao massacre de inocentes.
Nesta Arte da Semana, contamos a história por trás de uma das principais obras do século XX. Vem descobrir!
Os sombrios anos 30 ⚔️
Em 1931, após a demonstração de força dos republicanos nas eleições municipais e a renúncia do rei Afonso XIII, foi proclamada a Segunda República Espanhola. O novo regime, uma democracia frágil, enfrentava o desafio de implementar reformas e um período conturbado.
Nesse cenário, diferentes grupos políticos disputavam influência. Nas eleições de 1936, a coalizão chamada Frente Popular, formada por republicanos e esquerdistas, assumiu o governo.
No mesmo ano, um grupo de militares rebelou-se contra o governo eleito, dando início a Guerra Civil Espanhola. O combate opôs republicanos e nacionalistas.
Três meses depois, o General Francisco Franco sitiou Madrid e consolidou um golpe de Estado. Com o apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista aos nacionalistas, o conflito civil se intensificou.
Uma triste prévia da Segunda Guerra Mundial.
Guernica sob o fogo 💣
No início de 1937, a resistência republicana estava recuando em direção a Bilbao, capital do País Basco, ao norte da Espanha. O terror causado pelos bombardeios e a desorganização política dos republicanos enfraqueciam ainda mais uma reação.
Como parte de uma estratégia de terror psicológico para forçar uma rendição imediata, as forças franquistas escolheram um alvo estratégico: Guernica.
A cidade era símbolo do nacionalismo basco e seu bombardeio serviria tanto para quebrar a moral da população quanto para criar pânico em Bilbao. Coube à Luftwaffe, a força aérea nazista, enviada por Hitler para apoiar Franco, executar a ação.
No final da tarde e início da noite de 26 de abril, das 16h40 às 19h45, Guernica foi alvo de um ataque aéreo brutal. Não havia defesa antiaérea.
A ofensiva alemã destruiu a cidade em ataques sucessivos. Não existia justificativa militar para a sua destruição, pois não havia ali tropas nem alvos estratégicos, como fábricas de armamentos ou quartéis.
O massacre aconteceu em uma segunda-feira, dia de mercado para a comunidade local, quando a cidade estava repleta de civis. A cobertura jornalística foi fundamental, correspondentes estrangeiros próximos à cidade produziram matérias sobre o acontecimento.
Uma reportagem do jornalista George Steer, publicada no The Times e repercutida no The New York Times, causou indignação internacional:
Guernica, a cidade mais antiga dos bascos e o centro de sua tradição cultural, foi completamente destruída ontem à tarde por bombardeiros insurgentes.
O ataque aéreo durou três horas e quinze minutos e foi realizado por uma frota poderosa de aviões alemães, composta por bombardeiros Junkers e Heinkel, que despejaram bombas de até 1.000 libras (450 kg) e mais de 3.000 projéteis incendiários de alumínio. Enquanto isso, caças voavam baixo, metralhando a população civil que tentava fugir pelos campos.
Picasso e a causa espanhola 🖌️
Nos anos 1930, Pablo Picasso já era o pintor espanhol mais famoso de sua geração. Vivendo e trabalhando em Paris, ele recebia notícias sobre a insurreição fascista por meio de jornais e compatriotas que o visitavam.
Embora, à época, fosse reservado em relação a temas políticos, foi solidário à causa republicana desde o início. O artista vendeu obras de seu acervo e destinou aos desabrigados pela guerra.
Mas foi na própria arte que se deu a sua principal contribuição. Picasso já havia produzido O Sonho e a Mentira de Franco, uma série de gravuras satíricas acompanhadas por um poema, no qual denunciava a brutalidade do ditador.
Mas sua maior manifestação ainda estava por vir.
Gritos de crianças, gritos de mulheres, gritos de pássaros, gritos de flores, gritos de madeiras e de pedras, gritos de tijolos, gritos de móveis, de camas, de cadeiras, de cortinas, de panelas, de gatos e de papéis. - Pablo Picasso.

A forma artística 🎨
Em 1º de maio de 1937, poucos dias após a destruição da cidade espanhola, Picasso mergulhou no trabalho. Comprou uma enorme tela de 3,51m por 7,82m e começou a esboçar sua indignação.
A artista Dora Maar registrou o processo criativo do amigo. A pintura levou 25 dias para ser finalizada.
Esse acompanhamento revela que Picasso não partiu de uma ideia fixa, mas de um processo de experimentação e transformação. Cada mudança refletia a busca por um equilíbrio entre forma e significado.
Ele abandonou elementos mais diretamente políticos, como um punho cerrado, em favor de uma iconografia mais enigmática. Como Picasso percebeu com a obra Três de Maio, de Goya, a morte precisa ser tanto uma presença abstrata quanto uma realidade corpórea.
E em Guernica, essa dualidade se manifesta com a fragmentação cubista, que desarticula formas e anatomias, como se fossem destroços colados em um mural. Sem a perspectiva realista, tudo é achatado e angular, o que potencializa a angustia da cena.

O tom fúnebre é intensificado com a paleta em preto, branco e cinza. O monocromatismo impede que a violência seja cosmetizada – não há beleza, apenas a crueza do sofrimento.
A escolha remete à estética do jornalismo visual da época, como as fotografias de guerra de Robert Capa. A textura da obra, que lembra colagens de recortes de jornal, reforça esse efeito, como se fosse uma reportagem visual das atrocidades da guerra.
Os horrores da guerra 😢
A iconografia de Guernica não é de fácil decifração. Trata-se de uma composição que vai além da narrativa factual.
Apesar de ser uma pintura sobre a violência da guerra, a obra não mostra sangue nem armas explícitas. Picasso não pintou aviões, bombas ou soldados. Em vez disso, concentrou-se no sofrimento humano e animal, condensando o horror em símbolos universais.
No centro, um cavalo ferido relincha em agonia. À esquerda, uma mãe berra de desespero enquanto segura seu filho morto. No lado direito, uma mulher em chamas corre gritando de um edifício incendiado, enquanto outra foge em pânico.
No chão, uma flor brota sob a espada quebrada de um guerreiro caído. Um lampião surge no canto de uma casa, segurado pelo braço de uma vítima. Ambos parecem ser símbolos de esperança.
No topo, um olho em forma de lâmpada observa tudo: será possível que tais tragédias ocorram?
Observando a destruição está um touro, animal que remete à tradição nacional das touradas. Uma presença ambígua que pode representar tanto a brutalidade fascista quanto a resiliência do povo espanhol.
Quando perguntaram a Picasso o significado da obra, ele respondeu: Não cabe ao pintor definir os símbolos. Caso contrário, seria melhor escrevê-los em palavras.
Legado permanente 📖
A obra que leva o nome da cidade de Guernica logo se tornou conhecida no mundo todo. Se o bombardeio ficasse limitado aos registros oficiais, talvez não passasse de uma nota de rodapé macabra sobre um ataque a uma pequena comunidade.
No entanto, foi a tradução de Picasso para a linguagem da pintura que reservou à memória do local um lugar permanente na história. Soma-se a isso a reação dos nazistas e franquistas à época, que negaram que Guernica tivesse sido bombardeada.
O regime investiu em desinformação alegando que os próprios bascos haviam incendiado a cidade. Quando os britânicos sugeriram uma investigação internacional, a permissão foi negada de imediato.
O massacre serviu de teste para a força aérea nazista, que refinaria essa tática na Segunda Guerra Mundial. A exemplo dos bombardeios de Roterdã (1940), Coventry (1940) e Dresden (1945).
Franco permaneceu no poder até sua morte em 1975. Por causa dele, Picasso nunca mais voltou ao seu país natal.

O artista nunca permitiu que Guernica fosse levada para a Espanha enquanto Franco estivesse no poder. Ele deixou claro que a pintura só retornaria quando o país fosse uma democracia.
Durante décadas, a obra permaneceu no MoMA, em Nova York. Em 1953, veio ao Brasil, onde foi exposta na Bienal de São Paulo.
Em 1981, após quarenta anos de exílio, a pintura finalmente chegou à Espanha. Seu retorno foi um momento emblemático na história do país, sendo recebido como um símbolo do fim do franquismo. Atualmente, encontra-se no Museu Reina Sofía, em Madrid.

Somente em 1997, exatos 60 anos após a destruição, o governo da Alemanha reconheceu publicamente que a Luftwaffe bombardeou a cidade espanhola. O presidente alemão Roman Herzog enviou uma carta oficial ao povo basco pedindo desculpas pelo ataque.
Em 2003, o governo espanhol finalmente reconheceu que Guernica foi destruída pelos extremistas. A versão falsa de que os bascos incendiaram sua própria cidade foi retirada do registro histórico.
Impactado com a obra, Nelson Rockefeller, ex-vice presidente dos Estados Unidos, encomendou uma reprodução em tapeçaria. Hoje, essa versão está exposta na sede da ONU, em Nova York, servindo como um lembrete constante para os diplomatas do mundo sobre a tragédia humana dos conflitos armados.