Quem passa hoje pela Praça da Matriz em Porto Alegre talvez se surpreenda com uma ausência. Onde antes se ouvia os sons de dramas, comédias, concertos, encontros, agora reina a quietude.
Luzes apagadas, portas fechadas, fachada silenciosa. No coração do Centro Histórico da cidade repousa um dos palcos mais importantes do Brasil.
O edifício histórico é desejo de parada para artistas de todo o país e ponto de chegada para quem acredita no poder da arte. Mas uma dúvida paira como um sussurro no escuro da plateia: o Theatro São Pedro fechou?
A construção de um sonho (1833–1858) 🚧
A ideia de um teatro digno da capital gaúcha não surgiu há pouco. Em 1833, Manoel Antônio Galvão, então presidente da província, doou um terreno para a construção de um edifício que abrigasse as manifestações culturais da região. O projeto, neoclássico, foi assinado pelo arquiteto Filipe Normann1.
Mas a Revolução Farroupilha eclodiu em 1835 e interrompeu os planos por uma década. As obras só foram retomadas em 1847 e concluídas onze anos depois.
Após conviver com incertezas orçamentárias e disputas políticas, o prédio foi finalmente inaugurado em 27 de junho de 1858 com a peça Recordações da Mocidade, com direção de João Ferreira Bastos e música do maestro Joaquim José Mendanha. Na época, Porto Alegre tinha pouco mais de 18 mil habitantes.
Entre aplausos e silêncios (1858–1973) 🎭
Já erguido, o Theatro se manteve em atividade intermitente. Durante a Revolução Federalista (1893–1895), as cortinas permaneceram fechadas. Mesmo após o conflito, os espetáculos voltaram antes do público, que receoso permanecia em casa.
A retomada ganhou fôlego com o florescimento da arte dramática no Brasil. Novos palcos surgiam nos grandes centros do país, como o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909, e o Theatro Municipal de São Paulo, em 1911.
Escolas de dramaturgia surgiram no rastro desse movimento. Essa corrente chegava a Porto Alegre, e conseguia ocupar o espaço deixado pelas companhias estrangeiras, que por um longo período deixaram de frequentar o Estado.
Na primeira metade do século XX, aconteceu de tudo um pouco no São Pedro:
🎥 Exibição de cinema: em 1901, o palco recebeu a primeira sessão cinematográfica de Porto Alegre.
🥊 Lutas e torneios: durante a Primeira Guerra Mundial, a casa passou a sediar combates de boxe e lutas greco-romanas.
🚫 Censura às chanchadas: no Estado Novo, as comédias populares foram proibidas de serem exibidas no teatro.
⛑️ Cursos de enfermagem: durante a Segunda Guerra Mundial, a Cruz Vermelha promoveu capacitações no local para preparar a população contra ataques aéreos.
A cada novo conflito ou regime, o Theatro oscilava entre a efervescência e o apagão. Até os anos 1970, a casa já havia recebido nomes como Heitor Villa-Lobos, Cacilda Becker, Procópio Ferreira, Arthur Rubinstein, Eugène Ionesco, Henriqueta Brieba, Paulo Autran, Philip Glass e Bob Wilson.
Mas o tempo cobrou seu preço. Cupins, ratos, infiltrações, estruturas apodrecidas se tornaram parte do cenário. A deterioração era evidente.
Em 1972 um pedaço de um refletor caiu no palco durante o recital da violinista japonesa Nobuko Imai. O Theatro não poderia mais continuar funcionando naquelas condições.
Dona Eva entra em cena (1975–2018) 🌟
O segundo ato do Theatro tem nome e sobrenome: Eva Sopher, uma alemã de origem judaica que migrou para o Brasil ainda jovem por conta da perseguição nazista.
Ao ser convidada para liderar a restauração, recusou o chamado em um primeiro momento. Àquela altura ela atuava como produtora cultural e estava envolvida em outros projetos.
A provocação decisiva veio de seu marido, que a alertou de que, se não aceitasse o desafio, poderiam derrubar o edifício. Em 1975, Dona Eva assumiu a coordenação da restauração e se tornou a guardiã do teatro.
O artista plástico e arquiteto Carlos Antônio Mancuso foi um dos convocados por Dona Eva para o restauro. Sob sua orientação técnica, a missão era reconstituir e preservar o projeto original.
A Mancuso coube também a recriação do lustre de 30 mil cristais, 4 metros de comprimento e 600 quilos, suspenso no centro do teatro. O original a velas havia sido um presente do governo da França ao Rio Grande do Sul nos anos 1880.
A composição do alto do teatro foi completada com a pintura do forro pelo artista Plínio Bernhardt. O painel foi um dos destaques da renovação, homenageando elementos da flora e fauna do estado.
Foram anos de esforços até a reabertura em 1984. O Theatro São Pedro estava de volta em um período de abertura política.
Sob as mãos de Dona Eva também foi criada a Fundação Theatro São Pedro, a Orquestra de Câmara e a Associação dos Amigos do Theatro. A ideia de ocupar o teatro ganhava novas dimensões.

Em 1991, uma possível troca no comando do Theatro mobilizou a cena cultural. Nomes como Antônio Fagundes, Fernanda Montenegro, Jô Soares e Marco Nanini enviaram mensagens ao governador Alceu Collares pela permanência de Dona Eva. Em outra frente, cerca de 200 pessoas selaram o protesto com um abraço coletivo ao prédio.
A firmeza diante do abandono dos espaços públicos e históricos rendeu a Dona Eva o respeito de espectadores e artistas. O Theatro São Pedro virou símbolo de resistência cultural.
Dona Eva faleceu em 2018, aos 94 anos. Seu velório foi no palco que tanto defendeu.
Eu amo o Theatro São Pedro. Amo este espaço cênico. Foi amor à primeira vista, apesar da condição precária em que o vi pela primeira vez. — Eva Sopher.

O teatro é do povo (2000–2025) 🎟️
Com o tempo, o Theatro São Pedro deixou de ser apenas um edifício histórico para a cidade. Tornou-se uma referência afetiva.
Desde a criação do prêmio Top of Mind e da pesquisa Marcas de Quem Decide, o São Pedro lidera, ano após ano, a categoria teatro — tanto em preferência quanto em lembrança. O público sabe onde ele está, mesmo quando suas portas estão fechadas.
O acesso ao teatro, no entanto, ainda guarda vieses de classe. A maioria do público é composta por pessoas com ensino superior completo e renda acima da média. Ainda é um espaço marcado por barreiras econômicas e simbólicas.
Mas houve avanços: projetos de formação de plateia, ingressos subsidiados e ações educativas têm buscado ampliar esse alcance.
O Theatro pertence a todos. E quanto mais gente puder sentar nas suas poltronas vermelhas, mais forte será sua razão de existir.

E então... ele fechou ⏳
Sim, o Theatro São Pedro fechou. Mas não há motivos para despedidas definitivas, apenas uma pausa necessária.
A casa passará por reformas que visam melhorar a experiência e acessibilidade de seus frequentadores. Rampas, elevadores, seguranças reforçadas, o projeto prevê a restauração do prédio histórico como um todo.
O São Pedro se recolhe como quem sabe que grandes mestres também precisam de pausa. E enquanto repousa, já deixa seus herdeiros em cena. Ao lado, o Multipalco Eva Sopher segue pulsando arte, como um jovem que honra os passos de quem veio antes.
Sob a mesma gestão e carregando os mesmos princípios que fizeram do Theatro São Pedro um dos maiores palcos do Brasil, o complexo do Multipalco mantém viva a conexão entre palco e plateia, entre cultura e cotidiano. Um espaço que se abre para novas experiências, sem deixar de reverenciar a história.
Dica cultural 📢
Se você estiver por Porto Alegre no próximo mês, fique ligado: de 11 de junho a 06 de julho, o foyer do Multipalco recebe a exposição Plínio Bernhardt: Arte eternizada no São Pedro volta ao theatro.
A abertura acontece hoje às 17h, com apresentação especial de um quarteto de cordas da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro. Nos demais dias, a mostra segue aberta para visitação de terça a domingo, sempre a partir das 12h, até o dia 6 de julho. A entrada é gratuita.
Phillip von Normann, na grafia da época, antes do aportuguesamento.